Escreveu o filósofo JUVENAL ARDUINI: “O lugar é uma forma de linguagem. Há o lugar que narra a experiência do fracasso, do desespero. Há o espaço que conta a experiência construtiva, o momento feliz. Há o lugar que condensa a angústia e o lugar que ajunta as aspirações mais profundas. O lugar responsabiliza o ser humano. Muitos temem a denúncia que emana do lugar. É difícil suportar a interpelação do lugar abandonado, a recriminação do lugar esquecido. O ser humano sente-se acusado pelo lugar vazio, e chora o lugar perdido”.
A família é nosso primeiro lugar no mundo, nosso primeiro aconchego, o porto de chegada, o obrigo onde começaremos a contar nossa história, história esta que transportaremos para a vida social onde esperamos que, mediante as continuas e diferenciadas relações, ela possa adquirir mais amplo significado.
Todas as pessoas são condenadas a viver no mundo das relações, de que ninguém jamais poderá estar livre. Nossa individualidade depende muito dos outros. O outro está onipresente em nossa vida. Sem ele, não seríamos o que somos ainda mesmo quando temos relações infrutíferas.
“O outro nos alimenta e nos desnutre, nos inspira e nos deprime, nos impulsiona e nos detém. O outro nos consolida e nos ameaça, nos aprova e nos acusa, nos tranqüiliza e nos incomoda. O outro nos acolhe e nos desaloja, nos alegra e nos amargura. O outro está em nossa palavra, em nosso amor, em nosso perdão, em nosso rancor, em nosso desprezo, em nossa oração, em nossa incredulidade, no ato de construir e no movimento de demolir. O outro pode socorrer-me ou ferir-me, pode levantar-me ou derrubar-me. Mas preciso dele para existir em profundidade”, assevera JUVENAL ARDUINI desafiando a nossa tão decantada autonomia. Parece que pouquíssimas pessoas possuem liberdade e consciência de si mesmas o suficiente para escolherem a qualidade de suas relações e que tipo de influências elas exercerão em suas vidas. A maioria poderia se juntar ao pessimismo filosófico de JEAN PAUL SARTRE, e pronunciar em coro: “O inferno são os outros!”
O Padre FABIO DE MELO, fazendo uma análise das relações humanas, assim se expressou: “Toda relação requer prudência, cautela, para que não sejamos vítimas ou vitimadores. Toda relação que priva o ser humano de sua disposição de si, de sua pertença, ou seja, a capacidade de administrar a própria vida, de alguma forma caracteriza-se como um seqüestro da autenticidade”.
Por isso, conforme apontam determinadas pesquisas sociológicas levadas a efeito durante anos, inúmeras famílias caracterizam-se como “disfuncionais”, onde os papéis de seus membros são invertidos de forma desconcertante. É o espaço onde o indivíduo começa a perder seu próprio sistema de referências.
Que destino ambivalente o nosso! Impreciso, demarcado de dúvidas e incertezas, no entanto, para aqueles que querem construir um lugar comum saudável é necessário que incluam no programa existencial, os momentos de amargura e dilaceramento. Que aprendam, com o tempo, a incorporar na dinâmica da vida, as experiências das crises, das contradições e das derrotas, pois “o importante não é o que nos acontece, mas o que fazemos com o que nos acontece”. Mas a consciência de que podemos mudar os efeitos devastadores de certas experiências, somente se consegue através do autodomínio, do gerenciamento das próprias emoções e percepções. O processo é lento, trabalhoso, como não poderia deixar de ser. Somos obra inacabada; eis o fato.
A psicóloga MADRE CRISTINA SODRÉ DORIA, entende que ” o ser humano que conhecemos está mais perto do irracional do que de seu modelo de verdadeiro ser humano”. E o DR. PAUL TILLICH, um dos maiores teólogos do século XX, observou que “O ser humano, tal como existe, não é essencialmente o que deveria ser. Ele está alienado de seu verdadeiro ser”. Mas, se antecipando a eles há mais de dois mil anos, o Apóstolo João registrou em suas anotações: “Amados, agora, somos filhos de Deus, e AINDA NÃO SE MANIFESTOU O QUE HAVEREMOS DE SER”(I JO. 3:2). Isto sugere que no âmago de cada um de nós, existe um projeto, uma IMAGO DEI, uma ENTELÉQUIA que tende a realizar os seus fins à custa de um longo trabalho milenar.
Sociólogos, psicólogos, antropólogos, filósofos, religiosos e educadores ainda não encontraram um modelo ideal de conduta capaz de influenciar a criatura humana para que ela seja capaz de criar um espaço comum onde as pessoas nele inseridas possam partilhar suas diferenças, repensarem suas dúvidas, planejarem o que pretendem e descobrirem o seu lugar no mundo. Por isso, o modelo mais comum de família é o de um “ajuntamento de desconhecidos”, confusos diante do espaço que condensa a angústia de existir sem viver.
O educador ítalo-americano, LEO BUSCAGLIA, na década de sessenta, meados do século XX, asseverou que “cada um de nós é uma pessoa distinta. Somos a combinação sutil de fatores que não tem probabilidades de ocorrer novamente. Temos o direito de ser o que somos, mesmo se o que somos não for compatível com o que aprendemos a ser”. Contudo, nem sempre nosso lugar comum nos possibilita este direito inalienável. A angústia e a incerteza de nossos pais terminam por nos transmitir informações contraditórias e sentimentos instáveis que, normalmente, reproduziremos no espaço onde receberemos nossos próprios filhos.
Percebemos, muito cedo, que o mundo em que chegamos não é seguro, como muitos modernos estudos sobre a percepção dos recém-natos tem apontado. Não foi sem razão que um determinado poeta se lamentou num pequeno verso: “Ainda não nasci; consola-me. Temo que me banhem em rios de lágrimas!”
Se, como afirma a biologia, o cérebro se estrutura lentamente para nos auxiliar a elaborar o pensamento e aprimorar complexas funções, nosso desenvolvimento como pessoas não segue o mesmo ritmo como seria de desejar. Não conseguimos superar fases psicológicas, elaborando estruturas emocionais e intelectuais, etapa a etapa para que elas possam expressar todo o potencial com o qual nascemos. Nossas fases que passam pela infância, pré-adolescência, adolescência e pré-maturidade, são confusas e incompletas. Não há um rito de passagem de uma fase à outra, como a que certas antigas culturas, ainda, preservam como a judaica, por exemplo. Como decorrência disso, muitas pessoas têm uma idade emocional muito abaixo de sua idade orgânica. Há muitos adultos infantilizados à nossa volta e, o que é pior, grande número deles detém certos poderes políticos e sociais.
Ainda hoje deparamo-nos com o vigoroso mito de que os filhos nunca podem superar os pais, psicológicamente, adquirindo maturidade e autonomia. Mas, JESUS, como educador de almas, afirmou com incomum sabedoria:”Eu vim causar divisão entre o homem e seu pai, entre a filha e sua mãe”(Mateus 10:35). No entanto, certos tradutores entenderam que, na verdade, Ele teria dito: Eu vim para DIFERENCIAR! A diferenciação é importante, porque o que impede a união é a mistura, a perda da identidade. Portanto, O CRISTO veio tornar diferente aquilo que é comum mas que não gera frutos. Veio introduzir o bom senso nas relações, desestruturando o conceito de família de Seu tempo, antecipando-se, em milênios, aos modernos estudos sobre psicoterapia familiar.
O poeta KALIL GIBRAN, escreveu inspiradamente: “Vivei juntos, mas não vos aconchegueis em demasia, pois as colunas do templo erguem-se separadamente”. Uma família sadia, é aquela que respeita e incentiva a singularidade que o outro carrega consigo. É um sistema aberto onde o diálogo freqüente dirime dúvidas e ameniza conflitos decorrentes da convivência. É um local de encontros, desencontros e reencontros.
O escritor GEORGE LAND pensa que “o verdadeiro crescimento mútuo é o ponto em que as pessoas reconhecem, em conjunto, que o partilhamento recíproco das diferenças permite o enriquecimento de todas as partes”. Nosso primeiro lugar comum deveria, em princípio, nos fornecer isto. Provavelmente a sociedade teria em seu meio menos pessoas voltadas para o individualismo e a competitividade. Não necessitaríamos, por outro lado, do excesso de leis que parecem comprovar o fracasso das relações familiares onde os indivíduos não se prepararam, a contento, para saberem viver dentro dos limites que a vida social exige.
O momento em que vivemos é muito grave. É um gigantesco desafio à estabilidade da civilização. O Estado parece ter enlouquecido pois, os que o representam, perderam contato com o bom senso. Como resultado, vemos a todo momento a cidadania ser desvalorizada e o tão decantado processo democrático permanecer, apenas, como uma meta a ser atingida, apesar das constantes afirmações políticas garantirem que “nunca fomos tão felizes!!!”. Seria melhor dizer: “Nunca tivemos tanto poder aquisitivo para poder preencher o vazio que sentimos!”
Chegará um dia, assim espero, em que as pessoas estarão mais aptas para transformar o ninho doméstico num receptáculo agradável, onde os que chegam encontra conforto e segurança para aquilo que se deva manifestar, faça de forma agradável e permanente, expressando o projeto de DEUS inserido nos tecidos sutis da alma.
Infelizmente, por enquanto, a maioria se contenta em seguir automaticamente as leis da reprodução carnal, ignorando que, quem chega, é “um sopro(um espírito) que não sabemos de onde vem, nem para onde vai”, conforme asseverou JESUS, e que necessita de um lugar seguro porque “a criatura humana perde o sentido da vida quando não é capaz de descobrir o seu lugar na história. Não ter lugar equivale a não ter direito a existir”(JUVENAL ARDUINI).
Infelizmente, por enquanto, a maioria se contenta em seguir automaticamente as leis da reprodução carnal, ignorando que, quem chega, é “um sopro(um espírito) que não sabemos de onde vem, nem para onde vai”, conforme asseverou JESUS, e que necessita de um lugar seguro porque “a criatura humana perde o sentido da vida quando não é capaz de descobrir o seu lugar na história. Não ter lugar equivale a não ter direito a existir”(JUVENAL ARDUINI).
A família saudável, portanto, meta ainda a ser atingida pela espécie humana, é aquela em que não nos sentiremos mais acusados pelo lugar vazio, porque ele será preenchido de significados, e nem precisaremos, também, chorar pelo lugar perdido, porque ele será reencontrado, onde então será possível expressarmos nossas mais profundas aspirações.
Este texto foi encomendado a Tarcísio de Alcântara, natural de Caxambu, para o site da paróquia, no mês em que se comemora a estrutura mais importante da Sociedade: A Família.
TARCISIO ALCANTARA
28/07/2011