Estudiosos do cristianismo e religiosos de todas as épocas ainda se confundem, quando interpretam o supra citado versículo do Evangelho de Mateus, através do qual julgam revelar o perfil humano e frágil de JESUS, nos seus derradeiros momentos na cruz.
No entanto, para podermos compreender melhor a natureza do Mestre inesquecível, necessitamos lembrar outras narrativas que retratam Seu comportamento antes, durante e depois do martírio na cruz.
Sua percepção psicológica em relação às pessoas era extremamente aguda, para tanto:
Vê, à distancia, Natanael, um dos convocados para o ministério evangélico, refletindo sobre o significado da Torah, a Lei judaica. Ao se aproximar dele JESUS o elogia dizendo: “Eis um verdadeiro israelita!”. Surpreso, Natanael retruca: “Senhor, de onde me conheces?”. E O Mestre redargüiu: “Eu te vi sentado sob a figueira”. Natanael entende o profundo significado da resposta, pois o termo “estar sentado sob a figueira” é estar num significativo estado de consciência, em busca dos sentidos ocultos nas Escrituras judaicas.
Estando de passagem por Cafarnaum, cura à distancia com uma simples palavra o servo do centurião romano: “Nem em Israel encontrei um homem com tamanha fé”. Sua misericórdia derrubava o exclusivismo religioso e social impostos pela tradição judaica. “Senhor, não sou digno que entres em minha casa, mas dize uma só palavra e serei salvo…”.
Na Samaria, próximo ao poço de Jacó, em pleno meio dia, dialoga com uma mulher samaritana cujo povo era excluído do cenário convencional da época e expõe a ela paternalmente os conflitos que a atormentavam: “Senhor, vejo que és um sábio profeta. Será Tu Aquele que aguardamos?”. E O Mestre lhe responde: “Sim, sou Eu, Eu que falo contigo. Reoriente teus desejos bebendo da água que eu trouxe e nunca mais terás sede”.
Transitando por entre uma multidão de curiosos e doentes de todo tipo, sente um toque diferente nas vestes e sabe que foi proveniente de uma determinada mulher enferma. Com amorosa firmeza a convida sair do anonimato e proclamar publicamente a força de sua convicção: “Quem me tocou? Senti um toque diferente! “. “Fui eu, Senhor…”
Na casa de um rico fariseu que O convidara para jantar com ele, não recusa os beijos e as lágrimas de uma mulher pecadora, que adentrou pelo recinto derramando sobre Seus cabelos um raríssimo perfume. “Se Ele fosse um legítimo profeta saberia que ela é uma pecadora”, pensou o fariseu. No entanto, Ele, profundo conhecedor dos abismos da alma humana, volta-se para ela e lhe diz: “Eu te amo por ti mesma, os outros te amam por eles mesmos. O muito amor que me demonstras prova a quanta já foste perdoada”. E, voltando-se para o que O convidara, lhe diz de forma firme, contundente: “Ela veio até mim porque já estava perdoada. O amor que ela carrega consigo é capaz de cobrir, por si mesmo, uma multidão de pecados”.
Ao cair de uma tarde sufocante e vendo a multidão faminta que fora ouvi-lo suplica aos céus por pães e peixes e estes surgem do nada, alimentando a todos.
Certa vez, estando no Templo, em Jerusalém, desaparece e passa, invisível, por entre os que pretendiam matá-lo antes do tempo por Ele mesmo determinado. E em Nazaré faz o mesmo deixando confusos os que queriam lançá-lo do alto de uma rocha. Com tais atitudes, Ele demonstrava que era Senhor dos acontecimentos e que traçara um programa de vida que se cumpriria integralmente.
Na última ceia pascal, junto aos discípulos, libera Judas do colégio apostólico sem criticá-lo e o faz como um amigo incondicional estendendo-lhe um pedaço de pão: “O que tens de fazer, faze-o depressa”. Judas, então, sai atormentado por suas próprias decepções, vencido por expectativas não correspondidas junto ao Mestre, que ele prometera seguir. O traidor apenas traiu suas deformadas esperanças.
No momento de Sua prisão não se diz decepcionado com Simão Pedro após este tê-lo negado três vezes. Seus olhos espirituais, de longe, procuram pelos olhos espirituais do discípulo inseguro fazendo-o encontrar suas próprias limitações. Então, “saindo dali, Pedro chorou amargamente”.
Diante de Pilatos utiliza-se da autoridade do silêncio. A caminho do gólgota conforta as mulheres que O pranteavam: “Não choreis por mim, choreis por vossos filhos e vossas filhas”.
Nos momentos decisivos da crucificação JESUS cita, então, o salmo dos condenados que nos primeiros versículos deixa transparecer uma angustiante súplica: “Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?”. Na verdade, o salmo é um cântico que fala das contradições humanas nas horas mais graves e procura retratar o drama das lutas internas travadas dentro de cada um de nós perante o inaceitável, o incompreensível, o absurdo. Mas o salmo é, também, um grito de esperança, não um terrível lamento.
“Eu e O Pai, somos um!”, Ele já havia dito isto aos discípulos em determinada ocasião. Esta suprema unidade não poderia se desfazer na cruz, porque ela foi construída com amor e por amor.
Em momento algum Ele demonstrou que a cruz estava destruindo Suas expectativas ou derrotando Seus mais nobres sonhos. Quase todos os discípulos O haviam deixado naquele dia, no entanto, Ele manteve uma postura serena em todos os instantes.
Num momento de ternura, ainda mesmo na dor, Ele olha para Mirian (Maria) aos pés da cruz e, indicando o jovem discípulo Iohanan (João), recomenda-lhe: “Mãe, eis aí teu filho”. E voltando-se para o aturdido apóstolo-menino, lhe diz de forma materna: “Filho, eis aí tua mãe”.
Da pequena estrebaria onde se manifestou ao mundo até à cruz onde entregou Sua vida e depois a retomou numa madrugada silenciosa, Ele caminhou solitário e solidário entre nós. Num pequeno período de tempo sintetizou em poucas palavras e grandes gestos tudo o que os filósofos e os sábios, diante Dele, se esforçaram por ensinar.
Ninguém soube traduzir tão bem como Ele O fez as vozes provenientes dos céus. Ninguém como Ele conseguiu transmitir um amor que nada pede, que nada espera, que tudo suporta. Um amor que é paciente e que se alimenta de si mesmo, porque feito de infinito.
Texto escrito por ocasião da Semana Santa de 2004